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domingo, 29 de abril de 2012

LIBERDADE DE ENSINAR: ALCANCE E LIMITES DA AUTONOMIA DOCENTE.


É muito comum ouvir falar sobre a liberdade de cátedra, em especial entre os professores dos Cursos de Direito. Muitos entendem, equivocadamente, que ela atribui a plena liberdade do professor no direcionamento das disciplinas e matérias pelas quais é responsável. É necessário superar essa errônea visão. A Constituição brasileira traz, em seu bojo, a liberdade de ensinar no título VIII, capítulo III, seção I, que trata especificamente da educação:[1]
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios
[...];
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, [...];
[...].
No que diz respeito à liberdade de ensinar, o dispositivo constitucional possui a finalidade de garantir o pluralismo de ideias e concepções no âmbito do processo de ensino-aprendizagem, em especial o universitário; também busca garantir a autonomia didático-científica dos professores. Permite, nesse sentido, que os professores manifestem, com relação ao conteúdo sob sua responsabilidade, suas próprias convicções e pontos de vista, quando haja vários reconhecidos pela ciência – na situação específica dos professores de Direito, pelas teorias jurídicas e pelo Poder Judiciário. 
Mas é importante notar que ao lado da liberdade de ensinar está, em patamar de igualdade, a igualdade de aprender, liberdade que pertence, na relação pedagógica, ao outro polo do processo de ensino-aprendizagem. Portanto, se de uma lado a liberdade de ensinar autoriza o professor a expor suas próprias convicções e pontos de vista, a liberdade de aprender dos alunos impõe ao professor que também exponha as demais posições e teorias sobre o conteúdo específico, bem como seus fundamentos.[2] Impõe também que, sendo teórica e cientificamente aceitas, as demais teorias e posições possam ser adotadas pelos alunos em detrimento da por ele esposada – do mesmo artigo da Constituição consta expressamente, como princípio para que o ensino seja ministrado, o pluralismo de ideias. 
É fundamental também destacar que a liberdade de ensinar não protege as manifestações valorativas, ideológicas e religiosas que desrespeitem a liberdade de consciência dos alunos e que não possuam correlação com a matéria ensinada, bem como aquelas que professem preconceitos e discriminações vedadas pela nossa ordem constitucional e legal. 
De outro lado, a liberdade de ensinar autoriza o professor a utilizar métodos, metodologias, estratégias e instrumentos a sua escolha, dentre aqueles legalmente e pedagogicamente autorizados e reconhecidos (é o pluralismo de concepções pedagógicas presente no bojo do artigo 206 da Constituição, anteriormente transcrito). Nesse contexto, além das escolhas mais propriamente ligadas à didática – tipo de aula e de atividades, recursos tecnológicos, etc. –, está também incluída a liberdade de escolha de textos e obras, desde que contenham o conteúdo a ser ministrado e, no seu conjunto, permitam o acesso ao pluralismo de ideias presente no campo específico do conhecimento, e que não contenham material que endosse preconceitos e discriminações. 
Nessa matéria é ainda fundamental destacar o conteúdo do artigo 205 da Constituição Federal, que estabelece: Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. 
Esse é o primeiro artigo da seção que trata da educação: e sendo assim ela dá sentido aos demais. Os princípios do artigo 206, entre eles o da liberdade de ensinar, devem ser contextualizados no âmbito do direito maior, que é o direito à educação. Uma educação, que de acordo com o texto constitucional, garanta o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. A exercício da liberdade de ensinar que não garanta esse direito do aluno extrapola a autonomia docente. 
Outro dispositivo que deve ser lembrado é o artigo 209, que estabelece limites à liberdade de ensinar: 
Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: 
I - cumprimento das normas gerais da educação nacional; 
II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. 
Embora esse dispositivo faça referencia expressa às instituições privadas, as condições que contém são também obrigatórias para as instituições públicas; essa última é implícita, pois é necessário considerar que o que Estado exige da iniciativa privada no âmbito educacional é equivalente ao que ele exige dele mesmo, tendo em vista que a educação possui natureza pública. 
O que é preciso destacar, frente a ele, é que sendo as instituições de ensino obrigadas a cumprir as normas gerais da educação nacional, e impondo essas normas a elaboração dos PDIs, PPIs e PPCs, bem como o cumprimento de diretrizes curriculares editadas pelo CNE, seus professores também tem sua liberdade de ensinar limitada por essas normas, planos e diretrizes. Da mesma forma, estando as instituições de ensino submetidas a processos avaliativos, os critérios adotados para aferir a qualidade vinculam tanto as instituições como seus docentes. Mas mesmo limitada e contextual, é ela uma garantia constitucional, de duplo direcionamento: 
a) garante a liberdade de ensinar às instituições de ensino, que cumpridas as normas gerais da educação e as diretrizes curriculares, podem livremente construir seus projetos pedagógicos; 
b) garante a liberdade de ensinar do professor, que: 
· no âmbito do conteúdo da disciplina que está sob sua responsabilidade, mesmo no contexto de um projeto pedagógico específico, mantém o espaço de manifestação das suas posições e convicções, devendo entretanto, em respeito ao direito à educação, à liberdade de aprender do aluno e ao pluralismo de ideias, também propiciar aos discentes o acesso às demais posições e teorias aceitas pela respectiva área do conhecimento (e pelo Poder Judiciário, no caso dos professores de Direito); 
· no âmbito didático-pedagógica, mantém autonomia de escolha, respeitada a necessária adequação entre meio e fim.[3]
Em conclusão pode-se afirmar que a liberdade de ensinar aparece no texto constitucional como liberdade institucional e como liberdade docente. Em ambos os casos ela é limitada e contextual, ou seja, condicionada por um conjunto de outros princípios e garantias constitucionais e pela estrutura do sistema educacional brasileiro. Mas em ambos os casos ela é suficiente para garantir o pluralismo de ideias e abordagens pedagógicas e de expressão de posições e de convicções, mantendo assim a sua finalidade. Ao mesmo tempo, os limites que lhe são impostos impedem que de liberdade ela se transforme em arbitrariedade. 


[1] A Lei nº 9.394/1996 (LDB), em seu artigo 3º, reafirma essas liberdades garantidas pela Constituição, e mesmo as amplia: 
Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: 
[...]; 
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; 
III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; 
IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância; 
[...]. 
[2] Se as liberdades de ensinar e de aprender fossem absolutas, uma anularia a outra. Como princípios constitucionais é necessário buscar a sua harmonização, atribuindo-lhes interpretações que mantenham ambos e que permitam que o princípio central e originário, o direito à educação, ocorra de forma efetiva, plural e atingindo seus objetivos no campo da formação do aluno. 
[3] Essa, entretanto pode ser bastante limitada em situações em que o projeto pedagógico do curso contenha em si mesmo uma modelo metodológico, como acontece na Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP). Sobre a ABP em versão adaptada para os Cursos de Direito ver: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Popper e o processo de ensino-aprendizagem pela resolução de problemas. Revista Direito GV, São Paulo, FGV, v. 6, n.1, jan.-jun. 2010, p.39-57. Disponível em:http://dx.doi.org/10.1590/S1808-24322010000100003


A liberdade de ensinar é uma liberdade limitada, pois divide espaço com a liberdade de aprender dos alunos e com as garantia mais amplas de pluralismo de ideias e de abordagens pedagógicas, integrando todas o direito maior, que é o direito à educação. É também contextual, visto se manifestar no âmbito de um conjunto amplo de normas, diretrizes e planejamentos, recebendo dele suas limitações.



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